Aposentadoria: o direito de não ser esquecido

Aposentadoria: o direito de não ser esquecido

Aposentar-se deveria ser o encerramento digno de um ciclo. No serviço público, porém,

a aposentadoria tem se convertido em algo mais profundo e silencioso: um apagamento

institucional. É como se, ao ser publicada a aposentadoria no Diário Oficial, magistrado

e servidor fossem automaticamente riscados da história da casa à qual dedicaram décadas

de vida. Perdem o acesso a e-mail funcional, intranet, comunicados, cursos e até à

possibilidade de dialogar administrativamente com colegas e setores internos. De um dia

para o outro, deixa-se de existir na estrutura que ajudaram a construir.

Esse fenômeno não é individual. É coletivo, recorrente e profundamente sentido pelos

aposentados de grande parte do Poder Judiciário e de diversos órgãos públicos. A

mensagem é clara: cumprida a missão, a porta se fecha — e o vínculo simbólico se

dissolve. Trata-se de um etarismo institucional que opera sem alarde, mas com enorme

impacto emocional e identitário. Um magistrado ou um servidor que tenha dedicado 30

ou 40 anos ao serviço público não perde apenas o crachá; perde também o lugar de

pertencimento. Exceção à regra é o Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, onde

aposentados e ativos convivem em igualdade de condições, situação consolidada na

gestão da Desembargadora Ana Carolina Zaina como Presidente do TRT9, o que mostra

que é possível um tratamento igualitário e respeitoso.

Mas o problema não afeta apenas quem se aposenta. Em conversa recente, ouvi de um

magistrado, ainda no meio da carreira, algo simbólico e preocupante: “no dia em que eu

me aposentar, nunca mais coloco os pés no Tribunal.” Esse tipo de relato tem se tornado

frequente e revela uma ferida mais profunda: há pessoas desejando desaparecer não

porque querem um novo projeto de vida, mas porque já se sentem invisíveis quando ainda

estão na ativa. É um desejo de esquecimento que nasce da exaustão, da frustração e da

sensação de não-pertencimento — não de uma escolha genuína.

É importante dizer: magistrados e servidores públicos podem, sim, fazer belíssimas

transições de carreira após a aposentadoria. Muitos empreendem, dão consultoria,

tornam-se professores, artistas, produtores rurais, escritores. Outros escolhem, de modo

legítimo, simplesmente descansar depois de uma vida inteira de trabalho. Essas escolhas

são saudáveis, dignas e necessárias.

O que não pode acontecer — e é isso que precisamos enfrentar — é que qualquer uma

dessas escolhas seja motivada pela dor do esquecimento institucional. Aliás, do ponto de

vista linguístico a palavra escolhida já é um desrespeito: inativo. Não há necessariamente

inatividade na aposentadoria. E se houver será por opção, não demérito. É preciso de uma

vez por deixar de usar esta palavra como sinônimo de aposentado.2

A pessoa pode reinventar-se profissionalmente e ainda assim cultivar orgulho da trajetória

no serviço público. Pode optar por parar, mas manter vínculos afetivos e respeito pelo

órgão de origem. A transição de carreira não deveria significar ruptura emocional. O

afastamento não deveria ser um exílio. O novo caminho do aposentado não deveria ser

construído sobre o ressentimento de ter sido descartado.

A Política Nacional de Gestão de Pessoas do Conselho Nacional de Justiça prevê ações

de acolhimento, memória e valorização dos aposentados (Resoluções 240/16 e 526/23).

Mas a maior parte das instituições públicas ainda trata a aposentadoria como um ponto

final administrativo, e não como uma transição humana. E, em muitos casos, sequer

oferece acolhida adequada enquanto o magistrado ou o servidor ainda está em atividade

— o que explica, em parte, esse crescente desejo de sumir quando o momento da

aposentadoria chegar.

Perde o servidor. Perde a instituição. Perde o país. Porque ao excluir o aposentado, exclui-

se também sua memória institucional: soluções, histórias, crises enfrentadas, boas

práticas, erros que não deveriam ser repetidos. Um órgão sem memória é um órgão

condenado a recomeçar — e a errar — constantemente.

Por tudo isso, é urgente reconhecer que o aposentado tem o direito de não ser esquecido.

Ser esquecido — ou desejar sumir — revela um déficit de cuidado que nenhuma

instituição pode admitir. E é igualmente urgente compreender por que tantos magistrados

e servidores ainda na ativa já expressam o desejo de desaparecer. As duas faces desse

fenômeno apontam para a mesma necessidade: construir ambientes institucionais mais

humanos, mais cuidadosos e mais respeitosos com quem trabalha e com quem trabalhou,

com remuneração digna, sem perdas inflacionárias ou de qualquer outra espécie,

principalmente para os aposentados.

A aposentadoria encerra o trabalho, mas não encerra a pessoa. Ela continua pertencendo

ao órgão, à história e à missão que ajudou a cumprir. O magistrado e servidor aposentados

não pedem homenagens nem privilégios. Pedem apenas respeito, reconhecimento e

permanência simbólica.

Aposentar-se é um direito.

Ser esquecido não é destino: é abandono. E abandono não se tolera.

 

 

Claudia Marcia de Carvalho Soares. Juíza do Trabalho aposentada.

Presidente da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho – ABMT. Pós-doutoramento em

Direitos Humanos, Saúde e Justiça, Observatório de Direitos Humanos nos Países de Língua

Oficial Portuguesa (POSCOHR). Universidade de Coimbra/Portugal. Especialista em Psicologia

Organizacional/PUC/RS. Professora, Palestrante e Advogada.

Publicado em: 21/11/2025 22:11:00

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