Para uma proteção adequada ao trabalhador

Para uma proteção adequada ao trabalhador

Para iniciarmos o ano de 2021, voltemos a um tema ainda não completamente resolvido pela doutrina e jurisprudência trabalhistas: o conceito de relação de trabalho.

Fixar tal conceito resolve não apenas a delimitação da competência material da Justiça do Trabalho, como permite o desenvolvimento da área trabalhista para sua verdadeira vocação: a proteção adequada ao ser humano trabalhador.

Os números recentes acerca da quantidade de trabalhadores formais contratados pelo modelo celetista revelam uma tendência de queda, não apenas em decorrência da crise de 2015 ou da pandemia do coronavírus, mas em razão de novas formas de trabalhar e de gestão empresarial descentralizada. Em 2019, apenas três em cada dez trabalhadores possuíam vínculo de emprego formalizado, totalizando cerca de 35 milhões de empregados, enquanto que, em meados de 2020, o número girou em torno de 30 milhões (veja matérias sobre esses dados aqui e aqui).

O grande dilema para o futuro, portanto, é encontrarmos alternativas para conciliarmos a necessária proteção ao ser humano trabalhador, o desenvolvimento econômico e as novas formas de trabalhar. Um verdadeiro desafio para a atual geração.

Muito se fala sobre o tema, geralmente através da polarização entre os que pretendem a expansão do modelo atual de trabalho subordinado e os que sustentam a necessidade de desregulamentação das relações trabalhistas. Essas diferentes visões de mundo acabam dividindo mais do que opiniões, pois existe uma espécie de rotulação entre bem e mal, entre defensores de direitos humanos e capitalistas desalmados, o que, no fundo, apenas serve para impedir o avanço do diálogo e a percepção de que há, sempre, um caminho do meio, o da virtude.

O salto para chegarmos ao equilíbrio talvez seja desapegarmos de uma forma de proteção que já fez sentido, a da relação jurídica de trabalho subordinado, para nos lançarmos a outras possibilidades viáveis para as necessidades atuais, o que, em nosso sentir, seria desenvolvermos a proteção do ser humano trabalhador. Em outras palavras, deixar de protegermos um tipo de relação jurídica para passarmos a proteger a pessoa que trabalha (em qualquer modalidade).

Pouco importa a roupagem jurídica, há de se identificar se existe trabalho para que o ordenamento jurídico ofereça a proteção adequada a esse ser humano, não só do ponto de vista de direitos trabalhistas específicos, mas também da seguridade e previdência. A recente decisão do STF sobre pejotizaçãoobjeto desta coluna no último dia 29, revela a urgente necessidade de superarmos o modelo da forma jurídica da contratação para que o ser humano trabalhador disponha do mínimo que lhe garanta a dignidade.

Para tanto, a premissa que precisa ser construída é conceituarmos a relação de trabalho. A partir de tal ponto, poderemos identificar quem é o trabalhador e, com isso, sobre ele incidir a futura regulamentação protetiva a ser fixada pelo poder competente, o legislativo.

Como já defendi logo após a ampliação da competência trabalhista pela Emenda Constitucional 45/2004 ("Nova competência da Justiça do Trabalho: Relação de Trabalho versus Relação de Consumo", Revista LTr, São Paulo, SP, v. 69, n.1, p. 55-57, jan. 2005), o trabalhador seria, em resumo, o ser humano que gasta energia de trabalho pessoalmente, em regra com onerosidade e, sempre, com alteridade.

A alteridade deve ser compreendida, para esse conceito, como a circunstância de o trabalhador gastar sua energia de trabalho para outrem (tomador dos serviços) que, obviamente, aproveita essa energia para desenvolver sua própria atividade e, com isso, colocar seu produto no mercado buscando o resultado lucrativo. O tomador, portanto, corre o risco do negócio, enquanto o trabalhador, no máximo, corre o risco da sua atividade de trabalho.

Nesse modelo, o trabalhador terá sua energia de trabalho apropriada pelo tomador dos serviços, o que demarca o elemento essencial do ramo trabalhista, o conflito capital-trabalho, ressalvando que há algumas exceções que não cabem ser exploradas neste espaço.

Ao mesmo tempo, essa circunstância demonstra a regra geral das relações de trabalho que outrora se observou com a relação de emprego: a potencial fragilidade do trabalhador perante o tomador dos serviços, já que aquele se lança nesta relação para obter um bem essencial a sua sobrevivência digna, o pagamento, restando configurado o paradigma da essencialidade (sobre o tema, ver a obra de Teresa Negreiros "Teoria dos Contratos: novos paradigmas", Ed. Renovar).

Não importa mais se o trabalhador era subordinado ou não, habitual ou eventual, se o trabalho ocorreu sob fiscalização direta, remota ou sem fiscalização, nem mesmo o local da prestação de serviços ou quiçá os horários em que houve o trabalho: importa estabelecermos os limites em que a prestação do trabalho pode ocorrer e os direitos de quem trabalha.

Havendo a relação de trabalho, automaticamente qualquer trabalhador estaria protegido pelo mínimo essencial estabelecido pelo Estado que lhe garantiria a dignidade, harmonizando-se o valor social do trabalho e a livre iniciativa, oferecendo-se a leveza, a simplicidade e a flexibilidade que o mercado necessita. A partir desse mínimo, desenvolver-se-iam as minúcias da regulamentação através da negociação coletiva, também dentro dos balizamentos propostos pelo legislador.

E vale lembrar que o modelo tradicional não precisa ser abandonado, ainda que os números mostrem uma tendência de redução. A transição não precisa, nem deve, ser brusca. A evolução da sociedade não pede nenhum tipo de ruptura, mas alternativas que naturalmente se mostrem adequadas, a partir da construção do diálogo pelos representantes eleitos.

Possuímos décadas de experiência no tratamento das relações capital-trabalho, o que mostra claramente que o retorno a uma total ausência de regulamentação, com a premissa única da autonomia individual de vontade, produz efeitos maléficos para toda a sociedade, pois ninguém deseja um ambiente de exploração desenfreada.

Precisamos saber construir esse novo modelo de forma urgente, aliando liberdade e garantia de existência digna. Um belo brinde para o novo ano que se anuncia. Feliz ano novo!

Otavio Torres Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP e presidente da ABMT — Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho.

Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)

Publicado em: 05/01/2021 14:25:00

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