Desculpe-me, eu cumpri a lei...

Desculpe-me, eu cumpri a lei...

Por Otavio Amaral Calvet

A construção da jurisprudência ocorre de forma lenta, a partir das reiteradas decisões judiciais que interpretam o ordenamento jurídico à luz do caso concreto, criando cada magistrado a norma individual que determina a conduta do jurisdicionado. Trata-se do mecanismo de retirar da norma abstrata a conduta em concreto esperada para cada um de nós.

Essa tarefa "criativa" do magistrado possui claros limites, pois a regra geral em nosso país é não ser possível ao juiz decidir por equidade, ou seja, criando direitos e obrigações não previstos no ordenamento jurídico, preceito este, aliás, expressamente positivado na CLT pelo artigo 8º, §3º.

Sempre que uma nova norma é produzida pelo poder competente, iniciam-se as discussões jurídicas sobre sua interpretação, pois mesmo que o texto produzido seja claro, haverá a necessária filtragem constitucional, em que se analisa o conteúdo frente à Constituição Federal, o que pode levar a eventual declaração de inconstitucionalidade ou determinar a realização de uma interpretação conforme a Constituição para se aplicar a nova norma em consonância com os princípios e valores consagrados na Carta Magna.

Na área trabalhista, qualquer nova lei passa por intenso debate, já que a base dos direitos trabalhistas se encontra constitucionalizada e, ainda, diante de diversos valores e princípios previstos no texto da Constituição que afetam diretamente esta ciência, inclusive aqueles referentes à empresa e sua função social, a iniciar pelos fundamentos da República que pedem a livre iniciativa e o valor social do trabalho (artigo 3º , IV, da CF) em constante equilíbrio.

Soa natural, portanto, que novos regramentos em Direito e Processo do Trabalho suscitem divergências, ainda mais quando podem gerar reflexos em direitos fundamentais dos trabalhadores, o que se resolve com muita doutrina e a lenta construção da jurisprudência. Como exemplo maior, a Lei 13.467/17, conhecida como reforma trabalhista.

Justamente sobre uma das novidades da reforma, vale realizar a sucinta análise acadêmica do Acórdão nº 0021277-54.019.5.04.0007 (clique aqui para ler o texto completo), tendo como relator o desembargador Marcelo José Ferlin D’Ambroso, que chamou a atenção da comunidade jurídica por ter realizado um pedido público de desculpas à trabalhadora após anular a sentença de primeiro grau, em nome do "Estado (Poder Judiciário — Justiça do Trabalho)".

Estaria de fato a Justiça do Trabalho obrigada a se desculpar quando uma decisão de primeiro grau é anulada ou reformada em segunda instância por supostamente violar direitos humanos quando o magistrado simplesmente aplicou a norma legal por sua interpretação?

Evidente que não.

A decisão em análise utiliza argumentos que, se à primeira vista seduzem pela eloquência e referências a textos de tratados e convenções internacionais, ao fim pecam na conclusão da necessidade de o Poder Judiciário se desculpar.

Primeiro, porque não se pode falar propriamente em desculpas por interpretações divergentes de magistrados, mesmo de instâncias diferentes. Desculpar é eliminar a culpa, é querer o perdão.

No caso a culpa, ou erro, da decisão de primeiro grau teria ocorrido pela aplicação de expresso dispositivo legal que determina não se incluir na gratuidade de Justiça as custas decorrentes do arquivamento da ação trabalhista, fato que se dá quando o reclamante não comparece à audiência de forma injustificada (artigo 844, §2º, da CLT), sendo o pagamento destas custas requisito para propositura de nova demanda (artigo 844, §3º, da CLT).

Vale lembrar que tal texto legal foi objeto de aprovação pelo Congresso Nacional, em procedimento válido, que já produz uma análise de constitucionalidade durante seu trâmite, passando pelo crivo do Executivo através da possibilidade de vetos antes de chegar à aplicação pelo Poder Judiciário. Óbvio, portanto, que toda a produção legislativa goza de uma presunção de constitucionalidade.

Logo, se o magistrado, em sua interpretação, entender que o dispositivo legal está de acordo com a Constituição, não se pode jamais falar em erro, culpa ou qualquer outra coisa neste sentido, pois ele apenas exercitou seu mister conforme as garantias que a Constituição traz para o Estado democrático de Direito ao dar autonomia e liberdade para a magistratura decidir, desde que de forma fundamentada.

Em segundo lugar, o Poder Judiciário, ao emitir um pedido de desculpas em nome do Estado, não o faz, em nosso sentir, como órgão judicante, arvorando-se de uma função administrativa que não lhe compete. E, como atribuições administrativas não podem ser criadas pelo próprio administrador, mas devem estar prevista em lei, conforme o princípio da legalidade, somente caberia o registro de desculpas se esta função fosse expressamente concedida ao Poder Judiciário pelo ordenamento jurídico.

A decisão que analisamos utiliza como fundamento "legal" o Decreto nº 9.571 de 2018, em seus artigos 13 e 15. Ocorre que o decreto em questão não cria normas vinculantes, muito menos direcionadas ao Poder Judiciário, lembrando-se que decreto é ato do Presidente da República, não se confundindo com a produção legislativa do Congresso Nacional. Não pode o presidente da República, por óbvio, criar regramentos ou obrigações a outro poder, sob pena de lesão ao princípio da autonomia dos poderes, basilar de qualquer democracia.

Se não bastasse o argumento acima, não se pode deixar de perceber que o decreto em questão não tem por destinatário nem os demais poderes da República, nem órgão da Administração Pública, mas empresas do setor privado e, mais, sequer é de aplicação obrigatória a tais atores da sociedade.

A bem da verdade, o decreto estabelece "diretrizes nacionais sobre empresas e direitos humanos para médias e grandes empresas, incluídas as empresas multinacionais com atividades no País" (artigo 1º), diretrizes estas que "serão implementadas voluntariamente pelas empresas (artigo 1º, §2º), entre elas incentivar a adoção por parte das empresas e a utilização por parte das vítimas, de medidas de reparação como desculpas públicas (artigo 13 e item VII, letra 'b') e incentivar que as empresas estabeleçam mecanismos para “reparar, de modo integral, as pessoas e as comunidades atingidas" (artigo 14, IV) podendo incluir "pedido público de desculpas" (artigo 15, I) dentro de tal reparação.

Claro, portanto, que a base "legal" utilizada no mencionado acórdão não se sustenta, pois, além de tal norma não ser vinculante, não se dirige à magistratura do trabalho, ao Poder Judiciário ou mesmo ao Estado.

Em conclusão, ainda que a decisão anulada ou reformada não tenha efetuado a interpretação do Direito segundo o entendimento da maioria da instância superior, não cabe nenhum pedido de desculpas ao jurisdicionado. Não há erro a se desculpar.

Poderíamos indagar se o registro inválido de desculpas ao jurisdicionado, como feito pelo acórdão ora analisado, sem suporte no ordenamento jurídico, geraria, aí, sim, o dever do Poder Judiciário se desculpar formalmente com o magistrado cuja decisão foi anulada ou reformada, já que ficou a impressão de que cumprimento do seu dever constitucional teria sido exercido com o intuito de violar direito humanos, ainda que culposamente.

Academicamente, portanto, fica a crítica a mais esta novidade que, ao fim e ao cabo, apenas denigre o Poder Judiciário, pois coloca o magistrado em posição de fragilidade para o exercício do seu ofício. Vamos aguardar e analisar o fim dessa questão, na expectativa da realização de mais um pedido de desculpas, agora ao magistrado prolator da decisão de primeiro grau ou, quiçá, a toda a magistratura trabalhista ou, ainda, a todo o Poder Judiciário.

Otavio Amaral Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP e presidente da ABMT — Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho.

Confira: ConJur

Publicado em: 17/11/2020 16:18:00

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